Três pequenas crônicas com aquele clássico olhar sobre o conturbado, agitado e às vezes caótico cotidiano urbano.
FOTOGRAFIAS URBANAS
Cimento. Asfalto. Fumaça. Calor. William corta o trânsito com sua Harley. Moto de raça desperdiçando borracha de pneu em ruas entulhadas de pressas. Buzinaço. Verde. Amarelo. Vermelho. Entre retrovisores e sobre calçadas, William avança como um vira-lata acossado. Rosna sem fazer temer uma pomba sequer . Elas seguem ciscando suas migalhas e restos. Tranquilas. Entra na contramão. Sobe na calçada. Apenas um pequeno trecho. Atalho. Viela. Chega. Saca o capacete. Preto. Suor e sede. Enxuga-se com a mão de poeira cinza.
Na praça ao lado, Cadêncio fuma seu cigarro. Chinelo fresco solto livre. Banco de cimento duro. Rachado. Quente. Sem sombra. Praça baldia. Mato alto. Meio verde. Meio amarelo. Pátria ao meio apenas. Nem o vento nem o tempo aparecem para dizer algo. Tudo parece parado. À espera de qualquer coisa. Como a pomba tranquila. Cadêncio traga e volta a pousar a mão sobre o joelho descarnado. Fumaça sobe lenta. Quase morta. Tanto quanto os sonhos de Cadêncio. Por ali passa Bárbara. Num salto ruidoso e habilidoso. Esquivando-se de pedras e buracos. Calçado brilhoso. Plástico. Cáustico. Bolhento. Empinada e feliz. Carolina desce do ônibus e ajeita a mochila nas costas. Está cedo para sua primeira aula. Anda. Maurílio corre pra não perder o ônibus. Esbofa-se.
William monta sua Harley e segue para outra entrega. São muito pedidos. Desejos. Que não se encaixam. Como peças embaralhadas de quebra-cabeças distintos. Excesso de expectativa. Pessoas morrendo de esperanças. William corre para entregar. E saciar mais alguém.
ONZE MINUTOS
O casal desembaraça os ciúmes. Ele está indo bem. Aqui, bolo e amendoim. Lá, um copo de cerveja pelo meio. Tevê conta a vida de um jogador de futebol. Pano de prato passa pra limpar o balcão. Piada, risos, brincadeiras e trocos. Copo americano. Gente que se conhece. Chama um pingado. Grita por um pão na chapa. Moto rasga o ar. Um segundo de surdez. Mais uma gelada. Café ali. Tevê já fala de um crime. Outra piada, risos. Fila do pão. Potes engordurados de pimenta, mostarda e maionese. Sachês de açúcar. Um abraço de “você por aqui?”. Pra lá passa uma saia. De lá volta uma bengala. Menina saca uma coca da geladeira. Vento estranho. Guardanapos de papel voam. Grudam no chão. O café acaba. Pego a comanda. Levanto-me e já não vejo a hora de voltar nessa padaria.
A VIÚVA
Quem não conhece Marcília? Nem tão velha, anda pra cima e pra baixo sob seu véu preto. Um luto que parece não ter fim. Há muitos anos, desfila sua viuvez pelo mercado, feira, ruas, igreja. Sempre estranhei, porque já vi muitas vezes o carro do marido saindo e entrando em sua casa. Tive de me informar no boteco. E a explicação é simples. O sonho de Marcília, desde criança, sempre foi ser viúva. Uma vez casada, não teve paciência de esperar. Comprou suas vestimentas, entristeceu-se e seguiu sua vida enlutada. Uma feliz e realizada viúva.
Trilha sonora:
Oi, tudo bem? Muito bom. Adorei. Crônicas são sempre excelentes de serem lidas. Abraço!
ResponderExcluirhttps://lucianootacianopensamentosolto.blogspot.com/
Olá Luciano,
ExcluirFico feliz que tenha gostado, você é sempre bem vindo...abraço.
Concordo, Luciano! É um alento. Abraços
ExcluirAndo amando esse colocar textos, crônicas, aqui no blog.
ResponderExcluirComo amo letras, tudo que as envolve me encanta e já fiquei fascinada com os textos acima, imagens e claro, a trilha sonora!!!
Beijo
Angela Cunha Gabriel/Rubro Rosa/O Vazio na Flor
Olá Angela,
ExcluirFico feliz que esteja gostando, meu amigo escreve muito bem, que bom que também gosta das trilhas.
Beijos.
Oi, Angela! Que bom que gostou! E essa fórmula do Devorador de Letras, de incluir música, também me agrada muito. E com bom gosto rsrs
ExcluirOlá, Marco.
ResponderExcluirAdorei. As duas primeiras são situações constantes que nem reparamos no dia a dia. A terceira é mais inusitada e foi a que mais gostei hehe.
Prefácio
Oi, Sil
ExcluirDe fato, a terceira é meio estranha kkkk
Mas é também a que mais me agrada
Gente, que pessoa mais culta é esta. A junção das palavras é maravilhosa. Quando se consegue se dizer tanto com tão pouco me fascina, já que sou altamente prolixa, como este meu comentário. Nossa, fiquei extasiada. Parabéns!
ResponderExcluirGreice! Muito obrigado pelo carinho das palavras. Fico surpreso e feliz. Assim, pode ser prolixa o quanto quiser rsrs
ExcluirUm grande abraço!
O desfecho da última crônica foi excelente. Muito criativo e inusitado. Achei interessante como todas desenham com nitidez as cenas do cotidiano.
ResponderExcluirAbraço!
http://www.oguardiaodehistorias.com.br
Obrigado pela leitura e pelo retorno, Samuel. Marcília é mesmo uma inusitada e estranha personagem urbana rsrs
ResponderExcluirAbraços